terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O Sentido dos Saberes

Complementando o texto "Saberes Patrimoniais Pesqueiros", a autora discute aqui, o pensamento contemporâneo dentro das tradições e a modernidade.

Não existe ninguém no mundo melhor que os selvagens, os camponeses e os provincianos para estudar profundamente e em todos os sentidos os seus próprios afazeres; assim, quando passam do Pensamento ao Fato, podeis encontrar as coisas mais completas. (BALZAC, apud LÉVI-STRAUSS) O que se pretende realçar aqui é que, afora o valor em si dos saberes patrimoniais, eles não podem ser vistos como expressões congeladas – meras representações do passado. Tal maneira de pensar se insere na lógica ocidental, que elege a si própria, de modo absoluto, como a única expressão da razão – a medida de todas as coisas –, atribuindo às outras formas societárias um pensamento pré-lógico, inferior e irracional. Quando as formas tradicionais do saber são reconhecidas, elas o são apenas como espelho de um tempo que já passou – um tempo fossilizado –, como se fossem racionalidades mortas. Ou, no máximo, quando se admite a legitimidade desse saber, é conferido a ele um status secundário – saber empírico que decorre meramente da experiência. Sabe-se que essas expressões do raciocínio integram o pensamento ocidental, fundado na lógica cartesiana que se configura polar, dicotômica e excludente.
Superar os limites dessa razão implica considerar que o pensamento do outro em sua originalidade seja portador do que Lévi-Strauss chama de “ciência do concreto”, como expressão do “pensamento selvagem”. Para ele, ...longe de serem , como muitas vezes se pretendeu, obra de uma “função fabuladora” que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus resultados não forma menos reais.
Assegurados dez mil anos antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 31)
Esse pensamento, que não se confunde necessariamente com o pensamento do selvagem, é provido de abstração e se apresenta como uma dimensão do pensamento universal.
Tal como o pensamento científico, o pensamento mítico é analítico e sintético e, portanto, totaliza-dor (GODELIER, 1982).
Assim, nessa crise do pensamento contemporâneo, a construção de novos paradigmas requer o repensar tanto dos padrões dominantes que regem a relação homem-natureza na modernidade, quanto da cultura e da razão técnicocientífica em que se funda a lógica ocidental. Isso implica um novo projeto societário que venha a incorporar – num movimento contínuo de atualização e renovação – todo um saber secular ou Milena r dotado de conteúdo cósmico e histórico, produzido numa relação íntima e direta com a natureza.
Está se referindo a todo um saber mítico, simbólico e cultural – patrimonial – que índios, seringueiros, pescadores, coletores – povos do mar, da terra e da floresta – vêm produzindo em simbiose com os ciclos produtivos e naturais, em relação de profundo respeito ao meio em que
se inserem. O conhecimento que possuem sobre os ecossistemas dos quais fazem parte e sobre a diversidade de espécies que ali habitam constitui um verdadeiro patrimônio de que a modernidade não pode prescindir para a continuidade da vida no planeta.
Segundo Carvalho (1992), “uma nova cientificidade implica uma ampla reflexão sobre a ciência tradicional”. Para esse autor, o caráter dessa proposta, pensada já numa perspectiva “bioantropossocial” (uma vez que que dialoga com as ciências da vida e com as ciências do homem), não se ancora na justaposição de eficácias científicas, burocráticas e corporativas, mas no diálogo entre saberes de várias ordens, não apenas no âmbito disciplinar, mas com outras formas de conhecimento dotadas de lógicas culturais próprias. Desse modo, trata-se não apenas de reconhecer outras formas de saber geradas pela humanidade, em seu caráter histórico e patrimonial, mas de buscar um intercruzamento ou complementaridade de perspectivas para a construção de novas configurações paradigmáticas. Conforme Edgard de Carvalho, “essas configurações paradigmáticas emergentes certamente conduzirão a um reencantamento da ciência que implicará uma redefinição dos laços sociais, no retorno do sujeito, na valorização da ética, no redimensionamento do imaginário e principalmente na abertura da razão” (CARVALHO, 1992).
Nesse sentido, tradição e modernidade, como termos que se combinam e se complementam em arranjos históricos distintos – e não como termos que se excluem – significam, como se viu, romper com a noção temporal dominante que se apresenta em sentido unidimensional.
Reconhecendo o estatuto e o valor de saberes milenares ou seculares, Enrique Leff propõe, em termos epistemológicos, um diálogo entre os saberes para a construção de um novo modelo de conhecimento centrado não apenas nos padrões da ciência formal. Assim, observa: ...isso implica a necessidade de desconstruir a racionalidade que fundou e construiu o mundo, no limite da razão modernizadora que a conduziu a uma crise ambiental, para gerar um novo saber no qual se reinscreve o ser no pensar e se reconfiguram as identidades, mediante um diálogo de saberes (encontro, enfrentamento, entercruzamento, hibridação, complementação e antagonismo) na dimensão aberta pela complexidade ambiental para o reconhecimento e re-apropriação do mundo. (LEFF, 2001, p. 188-189)
Na mesma linha parece situar-se o pensamento de Antônio Carlos Diegues quando propõe o conceito de etnoconservação. Admitindo que a natureza faz parte da história e, portanto, reconhecendo a legitimidade das formas tradicionais de gestão dos recursos entre os caiçaras, assinala: “(...) a valorização do conhecimento e das práticas de manejos dessas populações deveria constituir uma das pilastras de um novo conservacionismo nos países do Sul. Para tanto deve ser criada uma nova aliança entre os cientistas e os construtores e portadores do conhecimento local, partindo de que os dois conhecimentos – o científico e o local – são igualmente importantes”. (DIEGUES, 2000, p. 41-42)
Tais considerações exigem “soluções” criativas e originais que levem a uma recombinação dos termos, em que o novo e o velho possam se enlaçar de ricas e distintas maneiras, em novas sínteses. Em outros termos, o que se postula é a conjunção de “tradição” e “modernidade” (ou modernidade “com-tradição”10) Pensar na possibilidade do intercruzamento de tradição e modernidade, eis o sentido dessa proposta; ou, como sugere Castoriadis, ...não haverá transformação radical, sociedade nova, sociedade autônoma a não ser pela nova consciência histórica, que implica ao mesmo tempo uma restauração do valor da tradição e uma outra atitude face a essa tradição, uma outra articulação entre essa e as tarefas do presente/futuro (CASTORIADIS, 1985, p. 305).
Isso requer pensar em novos paradigmas ou referenciais que permitam recolocar – ou reinventar – a tradição (ou os saberes da tradição) em novos termos, como força viva e propulsora da história. Ou seja, uma nova relação do homem com a natureza – fundada em nova ética – implica um olhar sábio para a frente e para trás. Isso requer não somente um esforço de ruptura com os abismos historicamente produzidos entre ciênciasdo homem e ciências da vida, mas um diálogo fecundo com outras formas e expressões do saber e cosmovisões, tecidas ao longo do tempo, para a produção e recriação da biossociodiversidade.
Saberes patrimoniais pesqueiros
Lúcia Helena de Oliveira Cunha

Este artigo resulta de um conjunto de trabalhos realizados pela autora, em momentos distintos, como proposta de reflexão final centrada na questão do diálogos entre saberes ( em publicação/ NUPAUB-USP).
Texto retirado da página :
postado por:
Cláudio Rogério
Bolsista do Núcleo NAVIS
DAN
UFRN

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Saberes Patrimoniais Pesqueiros

A Antropóloga, professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba e consultora do NUPAUB/USP, Lúcia Helena de oliveira Cunha, elaborou uma tipologia da produção pesqueira no litoral do Paraná com proposta de reflexão centrada na questão dos diálogos entre saberes. Andriguetto estabelece as práticas de pesca ali existentes. Para os interesses do presente estudo, depreende-se que a pesca artesanal subdivide-se na Pesca Rudimentar, que inclui as zonas com baixa intensidade tecnológica e baixa produção; e na Pesca Artesanal Diversificada de média tecnologia, que abrange as zonas de mais alta diversificação de práticas pesqueiras, mas de média intensidade tecnológica e baixa ou média produção. Essas últimas zonas correspondem às áreas estuarinas da APA de Guaraqueçaba, no litoral norte do Paraná, que, segundo o autor, “se apresentou assim como um espaço pesqueiro, com identidade própria” (ANDRIGUETTO FILHO, 1999).

Com base no seu artigo, dividi o texto com temas centrados para melhor compreensão. Em cada leitura uma abordagem referente a comunidade pesqueira (litoral do Paraná) mas que podem ser transportado para outras regiões conforme o entendimento já pesquisado.

Os pescadores artesanais são denominados de “povos da tradição”, simbolicamente representados, reveste-se de significações próprias em conformidade aos distintos olhares do mundo urbano. Sua forma de trabalho – a pesca – sequer é legitimada como tal, ignorando-se os múltiplos modos de produção ou de relacionamento do homem com a natureza – mediados pelo trabalho – que atravessam a história.
Tradição
Entendendo a tradição ou os “povos da tradição” em movimento, Bornheim (1987), recorre ao sentido etimológico da palavra e assinala: “(...) tradição vem do latim traditio e significa igualmente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar os dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração a geração. Em tais termos é que a idéia de tradição é marcada pela repetição e estabilidade, não abrindo margem à variação, enquanto a modernidade se movimenta pelo ritmo contínuo das mudanças, da novidade (Cunha 2002)¹.
A tradição é algo dinâmica, algo que transita, que se movimenta, deslocando-se assim, o sentido convencional que é imputado a palavra tradição ( ou a processos histórico-sociais tradicionais). Sem desconhecer que há tradições e tradições, o que importa marcar, aqui, é “que algo é entregue” de geração a geração para reproduzir no tempo – ainda que ressignificado no fluxo da história.
Preocupado com os fenômenos que tendem a desarticular as formas tradicionais de organização social do pescador artesanal, assim coloca Vieira (1995, p. 306-312): “... em termos mais concretos caberia empreender, num primeiro momento, a diversificação do potencial de recurso existente em cada microrregião litorânea, em sintonia com a valorização de formas tradicionais de conhecimento detidas pelos pescadores”. A partir daí o autor propõe a Gestão Patrimonial de Ecossistemas Litorâneos.
O olhar para o pescador artesanal
É corrente referir-se aos pescadores como povos atrasados, indolentes, preguiçosos, como se sua forma de organização social fosse destituída de dinâmica e racionalidade.
De outro lado, aludindo-se ao mito do paraíso perdido, os pescadores artesanais são vistos, muitas vezes, romanticamente vivendo no reino da natureza, quase como se com ele se confundissem, numa relação mimética. Essa visão idílica do pescador artesanal, centrada numa concepção fixa e exterior da natureza, tende a congelá-lo no tempo, como se fosse ausente de movimento, ausente de desordens. Assim, por não se inscrever no ritmo veloz dos tempos modernos, que incessantemente parece anunciar a emergência de “novos tempos” (em termos reais e fantasmagóricos), o pescador artesanal ou os chamados caiçaras aparecem desprovidos de sentido de tempo – ou, mais especificamente, de tempo em movimento –, estando dessa maneira condenados a ser eternamente os mesmos, eternamente passado.
olhar para o pescador artesanal (ou para o caiçara) como povo ausente de história, ultrapassado é negar sua relação secular com o ambiente em que vive, negar todo conhecimento acumulado de sua reprodução social e dos ecossistemas em que vive. Nesse sentido, além de destituírem o pescador artesanal de sua condição de humanidade, os olhares externos desconhecem que esse sujeito social tem uma forma de ordenação temporal e espacial dissonante daquela do contexto urbano-industrial e um conjunto de saberes patrimoniais decorrentes de sua interação secular com a natureza, dos quais a modernidade não pode prescindir para sua continuidade no tempo. Nisso, em que pesem as mudanças sociais que se vêm processando no interior das comunidades pesqueiras nas últimas décadas, descaracterizadas pela expansão da urbanização, do turismo e da especulação imobiliária em seus territórios (CUNHA, 1987-2000).
O tempo do pescador artesanal
Embora a “produção artesanal pesqueira” esteja inscrita na chamada pequena produção mercantil simples – portanto, subordinada desde sua gênese histórica ao “tempo do relógio” – é possível dizer que os pescadores artesanais ainda tecem seu próprio tempo num ritmo dissonante do ritmo urbano-industrial, pois suas vidas seguem os movimentos próprios da natureza – das marés, das espécies, dos astros e da atmosfera. A rigor, é um ritmo que se funda, de um lado, na especificidade do ecossistema marinho, imprevisível, cíclico e móvel; e, de outro, na atividade produtiva – a pesca –, entrelaçada com a passagem das espécies nas águas (com seu ciclo biológico e movimento migratório), regulando o tempo de trabalho. Pode-se dizer, seguindo Thompson (1978), que há ainda um “tempo natural” no interior das comunidades pesqueiras regulando o seu tempo de trabalho, ainda que articulado a outras temporalidades. É a pesca que comanda os horários do dia-a-dia, a sucessão, o ordenamento das tarefas e seus intervalos, no entrelaçamento da atividade com a natureza (Cunha, 1987).
Partindo do contraponto que Thompson estabelece entre o tempo do relógio e o tempo natural, entende-se por tempo do relógio toda produção e forma de ordenação social inscrita nos marcos do capitalismo, em que o relógio, como medida abstrata e externa de tempo, atua nos núcleos pesqueiros, em particular com a introdução de barcos motorizados, sofisticação dos apetrechos de pesca e intensificação da produção mercantil, com grau de dependência acentuado dos intermediários e presença intensa do turismo. De acordo com Thompson (op. cit), utilizamos também a categoria tempo natural, que não deve ser confundida com tempo em si da natureza. Conforme observamos, o tempo natural se manifesta nos núcleos pesqueiros artesanais a partir da relação que os homens do mar têm com a atividade e seus ciclos naturais.
O espaço e seus significados
Não obstante já revele desarticulação de práticas e formas de saber vividas no passado, a pesca artesanal requer todo um arsenal de conhecimento acumulado sobre o espaço marítimo, construído pela experiência, abstração e intuição. Nesse processo, é possível verificar na cultura tradicional dos pescadores artesanais uma noção tridimensional do espaço, que abrange seus distintos domínios de vida – mar, terra e céu – dotados de significado.
A par dessa concepção tridimensional do espaço, há de se considerar o mar como locus privilegiado da reprodução social do pescador artesanal, onde a apropriação dos recursos pesqueiros se dá de forma indivisa. Embora essa apropriação não seja homogênea – realizando-se mediante o trabalho dos grupos pesqueiros – é possível configurar o mar como espaço de propriedade comum dos pescadores artesanais, do qual extraem sua sobrevivência, ainda que marcada por disputas, tensões e conflitos.Aliás – convém salientar – esse espaço não configura apenas um espaço da sobrevivência material, mas um espaço de sociabilidades distintas, marcadas por arranjos próprios no desenvolvimento das diversas modalidades de pesca e por representações simbólicas, advindas da relação secular do pescador com o mar. A rigor, entre uma profusão de imagens, plena de significações, “os pescadores articulam seu conhecimento acerca da natureza a partir de dois movimentos: o de estender a ela as suas próprias capacidades intelectiva e volitiva e de aceitar alguns de seus fenômenos como indecifráveis, constituindo os mistérios, que preferem admirar a desvendar” (SILVA, 2000, p. 92).
Para Silva (2000,p.92) “as grandes diferenças que opõem a concepção ‘científica’ – intelectualista e voltada para a construção de um saber repousado sobre a ‘objetividade’, da nativa – holista e totêmica não ofuscam o que ambas podem manter de comum, visto que, voltando a Lévi-Strauss (1966), não só compartilham o critério exterior mas também respondem à ‘exigência de ordem que está na base (...) de qualquer pensamento humano”.
A lua e sua atuação
Ainda que de modo difuso e fragmentário em face das mudanças sociais que sofreram as comunidades pesqueiras nas últimas décadas – em especial os chamados caiçaras – a lua, de acordo com as representações sociais do pescador, é um dos astros que atua em seu universo eco-produtivo, favorecendo boas ou más pescarias. “A lua mexe com a pesca, a lua mexe com tudo.” Tais expressões são muitas vezes evocadas pelos pescadores artesanais e integram particularmente o universo cósmico dos mais velhos.
A lua é o principal componente que atua no ciclo da maré, condicionando a elevação do nível do mar, a força da corrente, influindo na presença do peixe no espaço aquático e na modalidade de captura (CUNHA; ROUGEULLE, 1989).
Os ventos
Os ventos também interferem na dinâmica pesqueira. Segundo moradores de Guaraqueçaba, o leste e nordeste seriam os melhores ventos para a pesca, particularmente para espécies como camarão, miraguaia, bagre e parati. Os ventos oeste e sudoeste, ao contrário, trazem dificuldades: “o oeste, o sudoeste são ruins para nós”, diz um pescador da Ilha das Peças. No caso da pesca da tainha, existem características particulares: o vento sul, chamado “rebojo”, faz baixar a temperatura ambiente, que “faz correr a tainha”, e é esperado com impaciência na época da safra; ele condiciona a chegada dos cardumes pela costa, e as alterações que muitas vezes ocorrem fazem com que os cardumes tendam a se dividir.
O ecossistema e conservação
Apesar de toda sorte de estereótipos atribuídos ao pescador artesanal e das ameaças a seus territórios tradicionais, a apropriação do ecossistema marinho é mediada por um complexo sistema cultural marcado por um manejo sábio dos recursos pesqueiros que os homens do mar desenvolveram ao longo do tempo.Em incursões realizadas anteriormente no litoral sul e nordeste do Brasil, pudemos observar, in loco, que há ainda nas comunidades pesqueiras pesquisadas um relativo estado de conservação – em particular no litoral norte do Paraná (Guaraqueçaba). Vejam em CUNHA; ROUGELLE. Comunidades litorâneas e unidades de proteção ambiental: convivência e conflitos; o caso de Guaraqueçaba (PR). São Paulo: NUPAUB – USP,1989. Esse estudo, além de levantamentos feitos em várias ilhas da região, em termos exploratórios, centrou-se em duas comunidades: Ilha das Peças e Tromomô – uma por desenvolver uma pesca típica de baía; caso de Tromomô – outra por incluir a pesca de interior de baía, a pesca de mar aberto; caso da Ilha das Peças. Esse estudo mostra que, embora sofrendo alterações, muitos dos processos ainda se mantém.
Ressalte-se que esse estado de conservação é derivado da forma secular com que as populações tradicionais locais se apropriaram do espaço marítimo e de seus recursos, e de toda uma sabedoria oriunda de seu sistema de vida tradicional.
Assim, ao longo do tempo, tais populações pesqueiras desenvolveram – mediante a observação rigorosa da natureza e a experimentação – mecanismos de controle ecológico, como forma de adaptar-se ao seu espaço ecoprodutivo e, ao mesmo tempo, conservá-lo. Tais formas conservacionistas envolvem desde a observação sistemática da natureza, de acordo com suas “leis” e movimentos internos, até mitos, crenças, normas e tabus culturais, que concorrem para o equilíbrio e reprodução dos ecossistemas marinhos.
No contexto da relação sociedade-natureza, típica do universo dos caiçaras, é possível evidenciar tanto mecanismos de ordem natural quanto de ordem cultural regulando a vida social: entre os primeiros, citam-se, como exemplo, os chamados sistemas de alerta, que, por meio da combinação dos ventos, das condições da maré e da lua, indicam se as condições são favoráveis para as pescarias ou não. Na verdade, são mecanismos naturais que se interpõem no universo da pesca, porém elaborados ou apropriados socialmente a partir da observação, da experimentação e da cosmovisão. Esses “sistemas de alertas” são mecanismos que indicam as condições de perigo ou evitam o livre acesso de outros pescadores nos mesmos pontos – o que acabaria por levar ao esgotamento dos recursos.
Ademais, os pontos pesqueiros constituem mecanismos de controle ecológico, pois evitam que a apropriação dos recursos seja realizada de modo indiscriminado e generalizado, ocasionando seu esgotamento (MALDONADO, 1989). Em Guaraqueçaba, por exemplo, pudemos constatar que, no passado, os pescadores não capturavam os camarões no baixio, onde se encontravam os indivíduos jovens dessa espécie.
Recentemente, a bióloga Érika Fernandes Pinto (2002) desenvolveu um estudo nessa mesma região, especificamente em Barra do Superagüi -- localizado em torno do Parque Nacional do Superagüi, em Guaraqueçaba, tem cerca de 1 - 110 habitantes distribuídos em 230 residências (PINTO, 2002) -- com a preocupação de configurar os modelos cognitivos presentes nos pescadores de pequena escala voltados para os aspectos etnotaxinômicos e etnoecológicos.
Para essa autora, os resultados do estudo revelam que os pescadores de Barra do Superagüi “possuem um conhecimento refinado e detalhado sobre os hábitos alimentares e das interações tróficas entre diferentes grupos de organismos, elaborando cadeias tróficas até seis níveis” (Fernandes Pinto, p. 2001). Isso revela um conhecimento extremamente detalhado dos peixes e de seu ambiente natural, assim como um refinado sistema classificatório, no qual a categoria peixe aparece numa extensa e hierárquica lista de 588 nomes distintos, que reflete riqueza e diversidade Afora a identificação de tabus e restrições alimentares, numa incidência de 26 recursos pesqueiros relacionados como tal, Fernandes Pinto (2002, p. 19) detectou 37 recursos marinho-estuarinos utilizados para a prevenção e tratamento de enfermidades, os quais podem ser classificados como elementos que integram a “medicina local”, ainda que, como alerta a autora, em conseqüência de processos sociais externos tenha ocorrido descaracterização e perda desse tipo de conhecimento, referido muitas vezes como “coisa dos antigos” ou “crendice” (FERNANDES PINTO, 2002, p. 20).
Em nosso estudo na Ilha das Peças, pudemos também constatar a existência de tabus alimentares que, direta ou indiretamente, concorriam como mecanismo conservacionista, tanto no universo da pesca quanto no da caça e da coleta. No período em que a mulher permanecia em “resguardo” após o parto, por exemplo, apenas algumas espécies eram comestíveis e outras sofriam proibição no interior do grupo doméstico e social.
Sobre o litoral paranaense é possível registrar, ainda, o estudo de Thomas (1997), que focaliza especificamente a Ilha do Mel, localizada na entrada da Baía de Paranaguá. Nesse estudo, a autora descreve as representações dos nativos acerca da vegetação da ilha, em parte de sua extensão. Em suas origens, a população local − constituída de índios, brancos e negros − vivia da pesca artesanal e da agricultura. Segundo a autora, foi a partir das décadas de 70 e 80 que o turismo ali se intensificou, abalando sua dinâmica socioambiental.
Em face do turismo, do desmatamento e do superpovoamento, o Estado se viu compelido a criar medidas para controlar a ocupação desenfreada, ainda que as unidades de conservação ali instaladas não envolvam a população local nas formas de manejo socioambiental. É nesse contexto que se decreta a criação na ilha da Estação Ecológica, com 2 240,69 ha, e da Reserva Natural, com 345,79 ha – áreas que representam 93% do espaço total da Ilha.
Considerando a riqueza do universo socioambiental principalmente dos ilhéus mais velhos, cabe perguntar: Qual o espaço que restou para os nativos desenvolverem suas atividades tradicionais? Até que ponto essas unidades de conservação – que dicotomizam a relação sociedade-natureza
– não acabaram por excluir o homem nativo de seu habitat natural e social? Diante da importância do mato e dos manguezais da Ilha do Mel, Thomaz (1997) procurou captar “as representações sociais que personificam elementos simbólicos constituídos num tempo longo, veiculados no imaginário social que geram significações e dão sentido à realidade”. Referindo-se aos vários ambientes que integram a Ilha do Mel, com foco no mato ou na floresta, os seguintes depoimentos sugerem uma percepção integrada do ecossistema da Ilha e das suas peculiaridade em vários momentos:
“ ...é do mato que a gente sobrevive, né, se só tivesse areia aqui não dava pra morar, o mato ajuda a segurar a terra...”
“... com árvore a Ilha fica mais segura, se tirar tudo, fica sem árvore (...) o que segura Ilha são as árvores.” Outros estudos significativos sobre manejo sábio dos recursos naturais são os de Born e Rodrigues, nos quais as autoras focalizam a riqueza dessa mata, registrando a cultura do Vale do Ribeira e sua biodiversidade. Apesar da destruição que a Mata Atlântica vem sofrendo, principalmente a partir da década de 70 em conseqüência da superexploração das espécies, em particular das brejaúvas para a produção de hashi em escala industrial, é possível ainda evidenciar a grande riqueza biológica, genética e cultural da região.
Embora tais riquezas sejam pouco conhecidas, “as comunidades locais e tradicionais e os grupos étnicos (índios e remanescentes de quilombos) que vivem nas áreas da mata atlântica, detêm grande conhecimento sobre a dinâmica e o uso de vários recursos naturais dessa mata...” (BORN e RODRIGUES, 1998).
Entre várias espécies (tucum, guamiova, cipós, taquara e bambu), esse estudo concentra suas observações na extração da brejaúva – uma palmeira robusta, com grande quantidade de espinhos negros. Os artesãos da região classificam dois tipos de brejaúva: a airi e airu, conhecidas também como preta e branca, respectivamente. Uma de suas características principais é de ser uma árvore fibrosa, popularmente chamada “marfim vegetal”. O florescimento da brejaúva ocorre na início do ano e sua frutificação em junho, atingindo sua maturação em janeiro, quando se dá a coleta dos frutos.
Baseadas em suas pesquisas, Born e Rodrigues salientam que há uma forma de manejo na extração das brejaúvas airí e airú, adquirida na longa vivência das populações tradicionais na região. Por exemplo, a extração do fruto da árvore comumente se realiza durante a lua minguante; caso contrário “sofre ataque de brocas”. Ademais, segundo as autoras em questão, os artesãos diversificam as áreas visitadas para evitar o esgotamento dos frutos e “escolhem o indivíduo mais ‘velho’, pertencente a uma touceira, antes de cortálo próximo ao chão com uma machado ou serrote”. Esse processo é seguido de um conjunto de critérios, desde a altura das árvores (deve ter cerca de 8 cm), posição e densidade das folhas (quanto mais velha a brejaúva menor a densidade de suas folhas caídas no chão), até distribuição dos espinhos no caule (ao envelhecer, a brejaúva perde os espinhos da parte inferior do caule).
Cabe realçar que as populações tradicionais somente efetuam a extração de outras plantas da mesma touceira depois de 10 anos – tempo necessário para o nascimento e maturação de outros frutos. “A extração de uma palmeira muito jovem compromete o aproveitamento de seu marfim...” (BORN e RODRIGUES, 1998).
Após a extração é que as populações locais indicarão o tipo de artesanato mais adequado para cada material, observados os tamanhos dos gomos no caule. Da palmeira, os artesãos fazem colheres, botões, hashis, tomando vários cuidados antes de proceder ao corte, como, por exemplo, identificando as partes do marfim vegetal que poderão ser aproveitados como matéria-prima para as variedades de artesanato, incluídas as esculturas que, inspiradas na natureza da região, adquirem a forma de pássaros (garça, coruja, macuco) e outros animais da Mata Atlântica.
Em que pesem os fatores externos que ao longo do tempo ameaçam a reprodução da brejaúva, esse é outro exemplo significativo do manejo sábio desse marfim vegetal praticado pelas populações tradicionais.
Diegues (1987, 2001) tem também demonstrado exaustivamente em seus estudos a existência de várias técnicas de apropriação dos recursos pesqueiros com característica conservacionista, entre as quais cita mecanismos de controle ecológico fundados no conhecimento e no segredo dos pontos pesqueiros, nos quais os “mestres” da pesca evitam o livre acesso de outros pescadores, como já foi dito. Tais mecanismos são regulados por arranjos culturais próprios, pois a prioridade de acesso a esses pesqueiros é norteada por uma ética baseada no “respeito” e no compadrio.
Cordell (1983) registra que o controle dos locais de pesca pelos mestres pode ocorrer também em função do ciclo lunar. Aliás, não podemos deixar de mencionar aqui a importância que a mestrança (MALDONADO, 1993) ou a atividade do “proeiro” adquire como bem patrimonial, expressando a sabedoria dos mais velhos, dos mais hábeis e experientes – daqueles que acumularam durante sua vida, de modo integrado, o saber-fazer. Tais mecanismos, no conjunto, revelam a existência de um complexo sistema cultural engendrado com grande sabedoria das condições naturais da vida e integrada à natureza, a seus ciclos e movimentos. Resgatar esse sistema cultural dos povos do mar – ainda que ressignificado no contexto da modernidade – é um desafio que se coloca para a ciência e para a história. Uma nova relação sociedad e natureza
implica, necessariamente, a valorização das formas tradicionais de produção.
Isso não significa elogio ao “primitivo”, às formas tradicionais pesqueiras – sabe-se que, longe de um paraíso, tais formas sociais vivem entre ordens e desordens – ordens e desordens são categorias reguladoras da vida humana, ainda que dotadas de historicidade. Trata-se apenas de “reengendrar” ou “reencarnar” essas formas sociais tradicionais, para que numa relação de troca possam transmitir seus saberes e fazeres, e desse modo a modernidade possa desenvolver um novo projeto civilizatório que contemple a tradição.


postado por:
Cláudio Rogério
Bolsista do Núcleo NAVIS
DAN
UFRN
claudiopotiguarrn7@hotmail.com

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

Brasil, um País de todos
O objetivo geral e principal do PNPCT é promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.
A instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT é fundamental não somente por propiciar a inclusão e social dos povos e comunidades tradicionais, como também por estabelecer um pacto entre poder público e esses grupos, que inclui obrigações de parte a parte e um comprimento maior do Estado ao assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira.
Em razão de processos históricos diferenciados, diversos segmentos da sociedade brasileira, podendo-se mencionar entre eles os povos indígenas, quilombolas,seringueiros, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, ciganos, povos de terreiros, pomeranos, faxinalenses, caiçaras, comunidades de fundo de pasto, entre outros, desenvolveram modos de vida próprios e distintos dos demais, ocasionando ao mesmo tempo riqueza sócio-cultural e invisibilidade perante a sociedade e as políticas públicas de modo geral.
Tal invisibilidade se reflete na ausência de instâncias do Pode Público responsável pela articulação e implementação de Políticas Públicas para estes povos e comunidades, especialmente no que diz respeito às políticas para inclusão social. Mesmo no caso daqueles para os quais já existe um reconhecimento constitucional, como os povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos, ainda existem questões primordiais pendentes como o acesso à terra ou à saúde e educação diferenciadas.
Embora venham desempenhando um importante papel na conservação dos recursos biológicos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados, inclusive na manutenção da agrobiodiversidade, os povos e comunidades tradicionais tem vivido uma situação de agravamento das questões relacionadas às possibilidades de permanência em seus territórios.
Assegurar o acesso ao território significa manter vivos na memória e nas práticas sociais sistemas de classificação e de manejo de recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção, além dos elementos simbólicos essenciais a sua identidade cultural. Assim, os territórios tradicionais além de assegurar a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, constituem a base para a produção e a reprodução de todo o seu patrimônio cultural.
No que diz respeito às características dos seus processos produtivos, os mesmo são marcados pela economia de subsistência, onde a produção é determinada por questões singulares ligadas às necessidades versus possibilidades, destacando-se as dificuldades enfrentadas por estes grupos no campo econômico, sobretudo no que diz respeito ao acesso ao crédito e ao reconhecimento da suas formas de organização social.
Essa realidade reflete a urgência de uma mudança significativa que permita a estes povos e comunidades a experiência de viver sua cidadania de modo integral, sem que para isso tenham que abrir mão das suas práticas culturais, sociais e econômicas.
A política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais tem origem em uma série de debates públicos realizados no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvimento sustentável dos Povos e comunidades Tradicionais – CNPT, fórum de composição paritária criado pela presidência da República (Decreto de 13 de julho de 2006).
Neste sentido, entre agosto de 2004 e novembro de 2006 foram realizados, entre outras ações, o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais (agosto de 2004 – Luziânia – DF) e cinco oficinas regionais no período de 13 a 23 de setembro de 2006, nos estados do Acre, Pará, Bahia, Mato Grosso e Paraná, as quais contaram com a participação de cerca de 350 representantes dos povos e comunidades tradicionais de todo o Brasil.
Tais processos além de subsidiarem a elaboração da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, também geraram elementos consistentes e legitimados para a proposição, a curto prazo, de um Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais e de um conjunto mínimo de ações efetivas que possam dar expressão real aos anseios refletidos nesta política, considerados coerentes com compromisso de reconhecimento e atenção à diversidade brasileira expresso, em última instância, na própria marca institucional desenvolvida para representar este Governo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Jangada - entre a reminiscência e a pesquisa etnográfica

Jangada é um livro que Luís da Câmara Cascudo escreveu sobre motivos de pesquisa etnográfica ligados a temas nordestinos. Contudo, nenhum escritor até agora conseguiu atingir em importância literária e testemunho pessoal.
É um livro no mesmo tempo de observação etnográfica e de reminiscências — e daí a sua importância como documento científico e obra literária. Entre todos os livros da obra numerosa de Luís da Câmara Cascudo, nenhum parece ter sido escrito com maior carinho; e em consequência dessa especial dedicação do autor, nenhum atingiu às culminâncias literárias a que ele chegou.
A cada momento, o etnógrafo se reencontra ora com a criança que foi um dia e brincou nas praias cheias de jangadas na sua cidade Natal (RN), ora como adolescente esportivo, que se atirava ao mar alto, em cima dos seis paus boeiros da jangadas nordestinas, em busca de aventuras que viessem confirmar os seus sonhos venturosos da infância e seu desejo de igualar em sua coragem e feitos marítimos a vida do cotidiano heroíco que desde a mais remota meninice estava acostumado a ouvir, narrada pela boca e pelas palavras dos próprios jangadadeiros.
O livro foi escrito, originalmente, para a "Societé d'Etudes Historiques Dom Pedro II", sob o patrocínio de Adalberto Ferreira do Valle e publicado pelo serviço de documentação do Ministério da Educação e Cultura. Assis Chateaubrind perguntou se Luís da Câmara Cascudo podia escrever um ensaio sobre a Jangada, ele respondeu afirmativamente: "Estava fiado nos velhos mestres, vivos e mortos, nas vozes desaparecidas ou ainda alertas soando em cima dos seis paus boeiros das jangadas do alto" (CASCUDO, 1954 p. 5).
Já nesta simpes frase com que finaliza o seu prefácio, Luís da Câmara Cascudo revela a preocupação de fixar, além da vida heróica das façanhas, e dos lendários dos jangadeiros, também o seu linguajar característico, tenso e da mais rude e exata contensão verbal e sintática.
No primeiro capítulo, estuda Cascudo o oficio do jangadeiro, a mulher rendeira; as pescas principais e de preparativos mais demorados — pesca do Voador, a Albacora, a Toninha, a Bicuda. Descrece as grandes festas praieiras: a procissão dos afogados.
A sua alimentação, o fumo, os dias de preceito, as superstições (a sereia do Paricé), as jangadas fantasmas, que tanto interesse apresentam para a nossa demonologia folclórica — tudo isso é objeto de pequenos ensaios, dentro do grande ensaio que é o capítulo sobre o jangadeiro, por vezes autêntico tratado de sociologia praieira.
A maneira bem típica e nordestina de norteação do jangadeiro, pelas "pedras marcadas" que cada um deles como objetos de propriedade pessoal e instransferível na sua constância em assinalar, nas praias e colinas adjacentes — eis ainda outros aspectos da profissão, dos hábitos e da psicologia dos grandes mestres, que Luis da Câmara Cascudo nos revela, pela primeira vez no Brasil.
O segundo capítulo trata da origem histórica e evolução da jangada; vinda da Índia, mas fixada, com características atuais e típicas, apenas em praias do Nordeste brasileiro. A vela, a bolina, o remo de governo foram modificações principais e simplificadoras, que o gênio inventivo do jangadeiro nordestino introduziu na velha e complicada "jangada" que os portugueses encontrariam na Índia e, mais tarde, seriam também assinaladas em águas do Pacífico, às costas peruanas, como variedade de gôndola genovesa, apenas de pau de jangada e cobertas de palha.
Estuda Cascudo a nomenclatura, a construção, a geografia e a economia da jangada nordestina, num paralelo erudito e seguro com as demais jangadas, de outras épocas e outras origens geográficas.
E enriquece grandemente o seu livro com uma antologia sobre a jangada.
Um último capítulo versa sobre o vocabulário da jangada, matéria do maior interesse para o vocabulário brasileiro, esse quase todos desconhecidos em nossos dicionarios.
Na região Nordeste do Brasil, a adaptação de um aparelho vélico às jangadas indígenas e o surgimento da jangada do alto, nos finais do século XVI ou início do século XVII, veio atender às “urgências de uma alimentação multiplicada pela população branca” (Cascudo, 1964).
Com o passar do tempo, conforme os saberes adqueridos oferecidos pela natureza ao pescador artesanal, ocorre as modificações na Jangada em toda faixa costeira, principalmente no Nordeste brasileiro. A adaptação do pescador em seu meio cria novas possibilidades pesqueiras, uma cultura própria com características voltada para uma vida totalmente artesanal. Hoje, o progresso introduziu novos meios de sustento, novas embarcações, novas práticas, mas sem extinguir o pescador artesanal.
- As embarcações e seu processo de mudanças durante os séculos, conforme apresentou Cascudo.


A Jangada Malaia


A Balsa de Guaiaquil em 1736 A Jangada vista por Henry Koster a 9 de Dezembro de 1809 no Recife. É a primeira descrição do século XIX.
Jangada em 1879 Jangada, desenho de João de Souza

Deixando Natal. Ao fundo a fortaleza dos Reis Magos.

Um Paquete (Natal)Jangada de Tábua (Natal)Paquetes e Botes, ao fundo, Jangada de Tábua (Natal).Jangada no SergipeJangada em PernambucoJangada em João Pessoa (PB)Jangada cearense

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

As ciências sociais e a pesca no Brasil

Até a década de 60, o número e estudos e publicações sobre comunidades de pescadores brasileiros foi relativamente reduzido. No entanto é preciso destacar os trabalhos dos antropólogos Pierson e Teixeira (1947), Survey de Icapara, uma Vila de Pescadores do Litoral Sul de São Paulo, e de Gioconda Mussolini, O cêrco da tainha na Ilha de São Sebastião (1945) e O cerco Flutuante: uma rede de pesca japonesa que teve a ilha de São Sebastião como centro de difusão no Brasil (1946), que descreveram o modo de vida e técnicas de pesca utilizadas pelos pescadores-caiçaras do litoral do Estado de São Paulo.
A contribuição etnográfica de Mussolini foi importante para o entendimento das relações entre as comunidades caiçaras (oriundas da miscigenação entre o colonizador português, o índio e o negro), o mar, os estuários e a Mata atlântica. Ela analisou também o processo de disseminação, entre os caiçaras, do cerco flutuante, aparelho de pesca introduzido pelos migrantes japoneses.
Entre 1950 e 1960 houve uma contribuição significativa dos geógrafos humanos que descreveram vários aspectos da distribuição e formas de vida dos pescadores entre o Rio de Janeiro e Santa Catarina (França 1954, Bernardes 1958, Brito 1960). Brito Soeiro, em Agricultores e Pescadores Portugueses na Cidade do Rio de Janeiro (1960) analisou a introdução da pesca de linha de fundo com caíques, introduzida pelos pescadores portugueses provenientes da Póvoa do Varzim.
O folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Jangadeiros (1957) fez o primeiro estudo sistemático sobre a pesca da jangada no Nordeste e as comunidades de jangadeiros.
Pode-se afirmar que, com raras exceções, eram trabalhos mais descritivos e impíricos, sendo que, no final da década, apareceram alguns trabalhos irigidos ao “estudo de comunidades” (Carvalho et al. 1969).
A partir do final da década de 60 e meados da de 70, alguns trabalhos de sociólogos e antropólogos ganharam densidade metodológica e teórica, enfocando sobretudo a questão das mudanças sociais entre os pescadores litorâneos. Nessa época, a pesca e as comunidades de pescadores começaram a ser percebidas dentro de um contexto mais amplo da sociedade nacional, da penetração das relações capitalistas no setor, dos conflitos entre pesca realizada nos moldes da pequena produção mercantil e a capitalista, etc.
O sociólogo Fernando Mourão, em seu trabalho Pescadores do Litoral Sul do Estado de São Paulo (1971), relaciona as mudanças ocorridas nas comunidades de pescadores dessa área com a emergência de uma nova racionalidade, a de mercado. A emergência da racionalidade característica do sistema de mercado foi concomitante ao surgimento de um novo estrato social (o dos pescadores artesanais com embarcações motorizadas que exploram o “mar-de-fora”) e ambos decorreram de mudanças no sistema de comercialização do pescado – especialmente fixação de um preço de mercado –, que levou também, em menor grau, à introdução de novas técnicas de captura.
O autor utiliza um instrumental de análise weberiano, contrastando o comportamento não-orientado pela dinâmica do mercado – próprio dos “pescadores-sitiantes” – com o comportamento racional, orientado pelas demandas do mercado – a dos pescadores artesanais “profissionais” que exploram sobretudo o mar-aberto com a ajuda dos recém-introduzidos motores-de-centro (década de 60). É nesse novo estrato – o dos pescadores artesanais motorizados – que o autor encontra uma certa ideologia da pesca, caracterizada pela identificação com o mar, em que a gratificação do trabalho aumenta não só pelas maiores quantidades capturadas, mas pelo domínio do mar, pelo prazer do saber-fazer.
Mourão, em uma análise minuciosa das diversas comunidades, constata também os conflitos entre os estratos inovadores dos pescadores artesanais motorizados e as “classes altas” locais (no caso de Cananeia, SP).
O domínio dessas últimas começaria a se romper com o surgimento de estratos inovadores ligados à pesca motorizada, do comerciante-inovador de pescado que financia a produção e de uma nova classe média de origem externa à cidade de Cananeia (SP).
Antonio Carlos Diegues, em Pesca e Marginalização no Litoral Paulista (1973) e Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar (1983), usando um enfoque da antropologia econômica, analisou as relações conflituosas entre a pesca artesanal e a pesca empresarial em termos de modo de produção, enfocando os aspectos sócio-políticos da emergência das empresas pesqueiras no país. Um dos aspectos importantes do trabalho é a análise da articulação e dependência da pesca artesanal em relação à empresarial, devido à desorganização da pesca artesanal, principalmente entre os pescadores do litoral norte do Estado de São Paulo.
O antropólogo norte-americano Shepard Forman, em seu livro The Raft Fishermen (1970), preocupou-se, fundamentalmente, com a mudança social e a tradição numa vila de jangadeiros, Coqueiral, no litoral de Alagoas.
Forman afirma que os jangadeiros de Coqueiral eram inventivos e que adotavam inovações desde que estas os beneficiassem diretamente e que não apresentassem grandes riscos aos que viviam num patamar mínimo de sobrevivência. Essas inovações incluíam, por exemplo, a introdução de redes mais eficientes. Para o autor, apesar do caráter tradicional da atividade pesqueira, as mudanças ocorriam vagarosamente, sendo acompanhadas de novas relações econômicas, particularmente por uma distribuição de riquezas que se dá, em geral, em detrimento dos pescadores.
Em Coqueiral, os senhores locais (bigwigs) manipulavam o ambiente natural e social segundo seus interesses e, para controlar a força-de-trabalho, exacerbavam as tensões que existiam numa comunidade incipientemente estratificada. Eles ditavam os códigos de conduta e controlavam o mercado de pescado.
Kottak realizou uma análise diacrônica dos processos de mudança na comunidade baiana de Arambepe, através de dois trabalhos: o primeiro foi publicado em 1966 – The Structure of Equality in a Brazilian Fishing Community – e o segundo em 1983 – Assault on Paradise. O autor parte do princípio que a comunidade estudada era relativamente isolada em 1965, com alto grau de homogeneidade social marcada pela presença da solidariedade familiar no trabalho de pesca e na vida social como um todo. Além disso, não havia ainda estratificação social, sendo também uma comunidade auto-suficiente na produção de alimentos.
Num primeiro retorno a Arambepe, em 1973, o autor já havia notado grandes transformações motivadas sobretudo pela implantação da Tilbras, indústria química criminosamente instalada próxima da praia, que passou a degradar o meio ambiente costeiro. Dada a beleza das praias e da paisagem, e também a proximidade de Salvador, a comunidade passou a ser muito procurada pelos turistas. A introdução dos barcos a motor tinha beneficiado sobretudo pessoas fora do setor pesqueiro e alguns poucos já proprietários.
Em sua última estadia na comunidade, em 1980, a situação tinha se transformado ainda mais, sobretudo pela abertura de uma estrada asfaltada ligando Arambepe a Salvador. Com ela, o turismo se intensificou ainda mais e se transformou na atividade mais importante na comunidade. Nesse ano, o número de pescadores tinha se reduzido a metade em relação a 1973 e a atividade tinha sofrido grandes transformações, com a introdução da pesca empresarial-capitalista, que usava sobretudo a força-de-trabalho migrante, exterior à comunidade. Inúmeras famílias passaram a viver de serviços a turistas (aluguel de casas, embarcações).
Uma outra contribuição importante na análise da mudança em comunidades de pescadores artesanais foi dada por Luís Fernando Duarte, em seu trabalho As Redes do Suor (1978). O autor procurou analisar os mecanismos ideológicos existentes na trajetória de mudança entre a organização da pesca artesanal, centrada no modelo de companha, que marca a cooperação entre os pescadores artesanais da canoa, e a emergência de uma nova divisão de trabalho, que passou a existir na pesca das grandes unidades de captura e pesca de sardinhas: as traineiras. Duarte analisou, em profundidade, a reprodução social dos pescadores de canoa e os impactos sobre ela causados pela imposição de um novo modelo de cooperação na produção das traineiras na comunidade de Jurujuba (RJ). Ele estudou o problema da identidade dos pequenos pescadores, centrada no modelo de companha, situada no passado como referencial de legitimidade comum.
Nesse sentido, o mundo da desordem, introduzido pela produção capitalista que avilta o trabalho, o conhecimento do mar e seus ciclos, só poderia ser alterado com a volta ao modelo de companha que, por sua vez, tampouco existe mais como no passado.
Até a década de 80, grande parte das teses dos cientistas sociais sobre a pesca e as comunidades de pescadores era produzida em instituições de pesquisa do sul do país, mas a partir de então houve uma maior diversificação geográfica desses trabalhos.
O surgimento da pesca industrial-capitalista no litoral norte do Brasil – e os conflitos daí decorrentes – foi uma das causas de uma crescente produção científica, centrada no Museu Emílio Goeldi e na Universidade Federal do Pará. O cientista político Alex Fiúza de Mello, em A Pesca sob o Capital: a Tecnologia a Serviço da Dominação (1985), analisou as consequências das inovações tecnológicas na pesca costeira amazônica em termos de poder e dominação. Já a antropóloga Lourdes Furtado, em Curralistas e Redeiros de Marudá: pescadores do Litoral do Pará (1987) estudou as técnicas e a organização social dos pescadores do litoral nordeste do Estado do Pará.
Esses trabalhos, assim como os de Violeta Loureiro (Os parceiros do Mar: natureza e conflito social na pesca da Amazônia, 1985), de Maria Angélica Maués (A literatura oficial sobre a pesca na Amazônia: uma tentativa de revisão
crítica, 1980), de Maria Eunice Penner (Dialética da atividade pesqueira no Nordeste Amazônico, 1984), de Lourdes Furtado, Wilma Leitão e Alex Fiúza de Mello (Povos das Águas, realidade e perspectivas na Amazônia, 1993) apontam todos, por caminhos analíticos e descritivos diferenciados, em vários locais (litoral do Pará, principalmente), o mesmo processo de transformação da economia pesqueira tradicional pela ação das indústrias pesqueiras, em geral vindas do sul do país. Estas, depois de exaurirem os recursos vivos do mar de alto valor no mercado, como o camarão, deslocaram-se com frotas e fábricas de processamento para o norte, onde se situam grandes bancos pesqueiros. Esse processo de modernização e pilhagem da natureza, iniciada já nos anos 60, acentuou-se nas décadas subseqüentes numa violência nunca dantes constatada nesse país. Se, num primeiro momento, essas indústrias usaram suas próprias embarcações para a pesca intensiva de espécies comerciais voltadas para a exportação (camarão, piramutaba, etc.), num segundo momento passaram a explorar também as áreas reservadas para a pequena pesca. A modernização e a inovação tecnológica da pesca artesanal, como afirma Mello (1985), não foi uma estratégia neutra, mas respondeu a uma estratégia da grande empresa que teve assim seus custos diminuídos.
Essa articulação com a empresa capitalista não foi, no entanto, despida de conflitos sérios com a pesca artesanal, resultando tanto na pilhagem desenfreada dos recursos naturais, causadora de uma grande mortandade de peixes miúdos pelo arrasto, como na destruição dos aparelhos de pesca tradicionais. Além disso, é necessário se mencionar os trabalhos da antropóloga
Simone Maldonado que, em Pescadores do Mar (1986) e Entre Dois Meios (1991), analisou a questão do saber, da territorialidade e do segredo entre os pescadores da Paraíba.
Ainda no litoral sul brasileiro deve-se destacar os trabalhos da antropóloga Lúcia Helena Cunha (Entre o Mar e a Terra: Tempo e Espaço na Pesca em Barra da Lagoa, 1987), da antropóloga Anamaria Beck (Lavradores e Pescadores: um Estudo sobre o Trabalho Familiar e Trabalho Acessório, 1979), e da socióloga Celia Maria e Silva, em seu livro Ganchos: Ascensão e Decadência da Pequena Produção Mercantil Pesqueira (1992), que analisam as formas pelas quais os pescadores artesanais usam o espaço costeiro e a desorganização das comunidades pesqueiras de Santa Catarina.
Em 1986 alguns cientistas sociais se reuniram em Brasília no I Encontro de Ciências Sociais e o Mar, para trocar informações sobre pesquisas realizadas no âmbito das populações humanas e o mar. Esses encontros continuaram a se realizar em 1988 e 1989 na Universidade de São Paulo, organizados pelo NUPAUB/CEMAR (Centro de Culturas Marítimas). Nesses encontros participaram antropólogos, lingüistas, cientistas políticos, sociólogos, etc. Em 1990 realizou-se, no Museu E. Goeldi, em Belém do Pará, o IV Encontro de Ciências Sociais e o Mar. De todos esses encontros foram publicadas atas contendo inúmeros trabalhos nas várias disciplinas das ciências humanas.
Na década de 90 diversas teses foram escritas sobre o tema, devendo-se ressaltar o trabalho do historiador Luís Geraldo Silva A Faina, a Festa e o Rito: Gentes do Mar e Escravidão no Brasil (1996), em que analisa o papel dos escravos libertos na atividade pesqueira do século XVII ao século XIX. Esse mesmo autor também publicou Caiçaras e Jangadeiros: cultura marítima e modernização no Brasil (1993), ressaltando o papel da mobilização dos pescadores artesanais na organização de entidades de classe mais democráticas.
Também nesta década foram realizados trabalhos que enfocaram as consequências de políticas públicas de conservação da natureza (estabelecimento de áreas naturais protegidas) sobre as comunidades de pescadores artesanais. Em O Mito Moderno da Natureza Intocada, de Antonio Carlos Diegues (1996), O Nosso Lugar Virou Parque, de Antonio Carlos Diegues e Paulo Nogara (1994) e na tese de mestrado de Lea Maria Thomaz, Representações Sociais dos Nativos da Ilha de Mel (1997), foram analisados os impactos da implantação dessas áreas protegidas sobre o modo de vida das comunidades de pescadores costeiros.
Os impactos do turismo sobre as comunidades de pescadores artesanais também tornou-se um tema importante para os cientistas sociais.
Sobre esse assunto pode-se ressaltar a tese de mestrado da antropóloga Maria del Carmen Calvente (1993), No Território do Azul-Marinho – a Busca do Espaço Caiçara, em que a autora analisa os conflitos gerados com o desenvolvimento do turismo na Ilhabela. O trabalho do antropólogo Steve Plante, Espaço, Pesca e Turismo em Trindade (1997), avalia os impactos do turismo sobre a comunidade caiçara de Trindade, no Rio de Janeiro.
Finalmente, na coletânea Ilhas e Sociedades Insulares, organizada por Antonio Carlos Diegues (1997), vários cientistas sociais analisam os vários processos sócio-culturais em que os pescadores-ilhéus estão envolvidos.
Antonio Carlos diegues. A sócio-antropologia das comunidades de pescadores marítimos do Brasil. Artigo assinala a importância das ciências sociais, particularmente da sociologia, da antropologia, da história e da geografia na análise das comunidades de pescadores ao longo do litoral brasileiro.

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